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Trabalho de Campo - Pesquisa/Geografia do Lazer

Entre a teoria e a prática (1)

Antes de utilizar a teoria habermasiana para a análise do presídio discutirei porque as teorias da dicotomia do tempo livre ou lazer/trabalho não permitem a existência do lazer dos presos no campo metodológico, seguido dos limites das teorias pós-modernas e da teoria configuracional de Elias e Dunning para compreender o lazer na reclusão.

O primeiro ponto é da tese do trabalho, como contraponto ao lazer, ou como elemento constituinte fundamental para existência do lazer (DUMAZEDIER, 1979). Nesta posição o preso por não trabalhar não possui lazer. Uma rápida leitura do modelo habermasiano permite compreender as relações de trabalho em uma lógica diferente da de Dumazedier.

Para Almeida (2003b), a partir das teses habermasianas, o trabalho e o lazer encontram-se em estruturas sociais distintas. Enquanto o trabalho encontra-se no Sistema dinheiro e poder, o lazer está no Mundo da Vida (espaço de relações intersubjetivas). O Sistema agrega as ações do tipo estratégico, isto é, ações egocêntricas no qual o ator social age para conseguir algo, deste modo ele não prioriza o consenso, as ações são voltadas para ganhos pessoais, não importando as regras normativas e o outro, apenas a vontade egoísta. Diferentemente do Mundo da Vida, pois o Mundo da Vida concebe a totalidade de relações pessoais através da comunicação, representa o respeito às normas e às formas subjetivas de convivência com seus pares. Assim o trabalho, ou, o não trabalho no presídio, não é um fator limitante do lazer. Pois, o que define lazer é o Mundo da Vida não o Sistema. Para Habermas (1987) todas as formas de relacionamento, como o lazer que é considerado uma forma de interação sócio-cultural, se orienta pelo Mundo da Vida.

O segundo ponto refere às atividades dos presos como recreativas e não de lazer. O lúdico e o prazer, como vimos anteriormente nas discussões de Gutierrez, são os elementos fundamentais para a constituição do lazer e recrear-se parte também deste pressuposto. Esta separação é ligada ao ranço do poder do trabalho no lazer, construído, principalmente, para segregar as atividades recreativas no labor, isto é, com o referencial teórico direcionado para o trabalho há uma grande dificuldade em interpretar as atividades desenvolvidas no próprio trabalho, seja relaxamento, ou campeonatos operários, enfim, os limites do que é ou não lazer são tênues. Inserindo a escola nesta discussão, o paradigma do trabalho torna-se ainda mais complicado, seria lazer as atividades extra-classe? Por estas dúvidas os autores que discorrem sobre a dicotomia lazer e trabalho, criaram a categoria “recreativa” para definir este elo tênue entre o lazer e trabalho, ou um meio-termo. Por isso as atividades de lazer no presídio poderiam ser consideradas como recreativas segundo estes mesmos autores. Como o lazer não é definido como contraponto ao trabalho e sim pelo mundo das relações e da sociabilidade espontânea (Mundo da Vida), não é possível usar esta definição para o lazer dos presos.

Quanto às teorias do fim do trabalho, apesar do prazer, ou sua necessidade, estarem nas teorias de Habermas, segundo interpretação de Gutierrez e Almeida, e na de Elias e Dunning, existe uma diferença fundamental. Enquanto Gutierrez e Almeida têm como perspectiva uma sociedade de conflito, Elias e Dunning apontam para uma sociedade harmônica através das práticas de lazer. Para Gutierrez e Almeida a busca do prazer passa pelo conflito do princípio do prazer versus o princípio da realidade (Neurose), pelas normas construídas no coletivo e pelos símbolos compartilhados no mundo da vida, no qual o sujeito deve ser integrado para viver em comunidade. Do outro lado, Elias e Dunning apontam para um aspecto utilitarista do lazer. Isto é, o lazer serviria como elemento que permite aflorar as pulsões e ações reprimidas pelo ordenamento contemporâneo. Sua forma, construída pela sociedade moderna, alivia as tensões que a sociedade urbanizada impõem para vivermos em sociedade. O lazer parte de um pressuposto harmônico ou de tender a uma harmonia sistêmica.

O processo histórico que integra o lazer e prazer é compreendido pelas práticas simbólicas e constituição de uma comunidade organizada em qualquer tempo e lugar, a interpretação deste artigo acerca do lazer parte desta construção coletiva. Diferentemente deste referencial, se utilizássemos Elias e Dunning, as atividades de lazer dos presos não representariam os papeis da cultura delinqüente, mas sim uma forma de aliviamento das pulsões, mas como pensar em aliviamento se estes indivíduos estão no cárcere justamente por não ter internalizado as regras que regem o coletivo. Fica no mínimo incoerente apoiar-se neste referencial para a análise do sistema prisional e lazer dos presos.

Quanto as teorias de lazer pós-modernas, apesar delas se aproximarem de um sujeito hedonista e permitir o lazer dos presos no plano metodológico, elas não discutem o lazer macro-social como Habermas (Almeida, 2003b). Recorrendo as teorias pós-modernas não haveria avanço na análise do presídio já que qualquer tema pode ser pulverizado e encaixado. A idéia pós-moderna não é ter uma metodologia clara ou marco conceitual único. Este trabalho pretende utilizar o presídio para ampliar conceito de lazer, que, a partir desta análise, poderia ser reportado para outras esferas sociais, o que não ocorreria se utilizássemos as teorias pós-modernas.

Por isso trabalhou-se, para a análise do lazer dos presos(1), com teorias que valorizassem diferentes instituições: as normativas, sociais, simbólicas, juntamente com a possibilidade de projeção do agente social nelas. Assim, as dificuldades metodológicas existentes nas teorias ligadas ao trabalho e obrigações deixam de existir. As atividades no pátio, mesmo em um espaço e tempo limitado, as organizações de festas internas, os campeonatos de diferentes modalidades coletivas, mostram o todo orgânico do espaço de reclusão. Entendendo que o sujeito inserido no sistema prisional não perde seu caráter histórico, humano e transformador, e o lazer no presídio é característico pela formação social presente em qualquer meio social organizado.

As teorias prisionais, resumidamente, referem-se ao presídio como local de efervescência da delinqüência, de reprodução da violência, um local estanque da sociedade livre que não existe qualquer troca simbólica, qualquer possibilidade de comunicação e formação de grupos de amizade e muito menos possibilidade de lazer. Goffman (1996) e Foucault (1986) compartilham com este quadro teórico apresentado. Nestes termos, os autores não entendem o apenado como única e exclusivamente privado de liberdade. Este sujeito encarcerado, segundo a análise habermasiana, não deixa de ser humano quando preso, conseqüentemente, o mundo do encarcerado não é um local estanque da sociedade livre e não somente reproduz-se a violência no presídio2. O preso é histórico, transformador e comunicativo, buscando auferir prazer como qualquer outro, por isso existe o lazer no presídio e o lazer na reclusão determina a situação do preso e grupo que o sujeito representa, fazendo, desta maneira, parte da cultura prisional. “Trabalhar na prisão é principalmente uma forma de ser bem-visto pela administração, diminuir a pena, e, ainda, uma maneira, a lado de jogos, televisão, futebol, de matar o tempo” (GOIFMAN, 1998 p.214).

Neste sentido, as atividades que reproduzem o ilícito, no caso o carteado, os jogos de azar, a homossexualidade, o consumo de drogas, são características do lazer de um grupo em um certo contexto, pois o lazer é entendido pela busca do prazer, não havendo, portanto, nenhuma forma de lazer que não buscasse auferir prazer. E este prazer, que pode ou não ser efetivamente consumado, é um elemento essencialmente humano, característico da formação da personalidade e presente em qualquer meio social organizado, desde uma perspectiva histórica (GUTIERREZ, 2001).

Lazer e presídio pela Teoria da Ação Comunicativa

O lazer é entendido pela busca do prazer, que pode ou não ser consumado, pensando o agente como histórico e dotado de razão, que segue suas vontades, seus símbolos e padrões culturais, ou suas ações restritas às sanções e normas sociais (GUTIERREZ, 2001). Isto é, o lazer está no mundo da vida e tem como limite as normas do grupo, a sociedade e a ação do indivíduo. As atividades de lazer caracterizam-se por uma liberdade relativa de opção, pela percepção individual e subjetiva da expectativa de prazer e pela autonomia e responsabilidade do agente sujeito da ação social. Isto coloca grande parte das manifestações do objeto lazer no campo da sociabilidade espontânea, ou informal, compreendida aqui como espaço de interação distinto dos sistemas organizados formalmente, ou burocratizados, a exemplo das dimensões políticas e econômicas, definidas por Habermas como sistemas dirigidos pelos meios poder e moeda. (GUTIERREZ, 2001).

Um importante avanço nas teorias do lazer, foi dado por Gutierrez (2001) ao relacionar o lazer à busca pelo prazer. Este prazer encontra-se no mundo da vida, no mundo das relações pessoais e da cultura. Esta ferramenta possibilitou entender o fator histórico-social do lazer que é próprio do humano, isto é, a busca social pelo prazer é própria de qualquer tempo e lugar, tem características na formação cognitiva humana e por isso é determinado historicamente. O lazer por estar no mundo da vida e das relações representa o arsenal do saber humano e não é restringido pelo trabalho. Portanto, as práticas de lazer dos presos não possuem somente uma formação de fora imposta pelo governo, mas suas práticas superaram as imposições institucionais e são desenvolvidas por um conjunto de ritos e símbolos próprios da reclusão. Isto é, o lazer dos reclusos reflete a cultura da penitenciária e é parte integrante do arsenal simbólico da reclusão.

Neste caso o lazer associa-se às regras intramuros, aos códigos internos peculiares ao sistema prisional, ao espaço totalitário, à concentração de poder e à vigilância constante (FOUCAULT, 1986). Estas afirmações provocam um afastamento da idéia de lazer voltado a transformação social e a reabilitação.

O lazer interpretado por uma leitura romântica é associado à educação e às regras morais aceitas pela sociedade, afirmo, diferentemente desta perspectiva educadora, que o lazer não é sinônimo de educação e da pedagogia (ALMEIDA, 2003a), o lazer expressa as regras de um grupo, associado à sua perspectiva histórica e cultural, onde os agentes sociais dotados de razão, segundo Habermas (1987), são responsáveis por suas ações sociais.

O lazer expressa a prisionização (AMORIM, 1993) e os valores da “sociedade dos cativos” (PAIXÃO, 1987 p.42): “Essa ‘sociedade dentro da sociedade’ nasce do isolamento da massa carcerária e constitui meio propicio para processos de conversão de internos em uma perspectiva criminosa.

Por isso o lazer integra-se a este “estilo” de vida, que pode ser resumido pela aceitação de papel inferior, desenvolvimento de novos hábitos, adoção do linguajar local e sempre buscar um “adiantamento”. Este processo não ocorre somente ao detento, mas às pessoas que trabalham nos espaços de reclusão por conseqüência, criando em seu invólucro tendências próximas deste sentir o poder e a submissão do outro. Por este motivo, há a proliferação do ilícito na relação entre presos e instituição, tendo como fim a liberdade e a recuperação ou, no mínimo, amenizar sua “estada” na reclusão. Em um sistema totalitário com regras próprias, o detento necessita se integrar para a sua sobrevivência (PAIXÃO, 1987). Neste sentido percebe-se a dificuldade da reabilitação, porque os hábitos transitam em dois sentidos antagônicos: o primeiro é a reabilitação pela submissão; o outro é a reincidência.

A partir desta análise entenderemos o lazer dos presos através do fenômeno da prisionização, pois o lazer é incorporado na prisionização e integra-se a partir das normas do grupo. As atividades desenvolvidas pelos presos refletem uma ótica a partir do ilícito pela lei e sociedade, onde ocorre a reprodução de um certo tipo de linguagem e modos de relacionamento interno. No caso, fala-se “das leis dos cativos” entre os cativos.

“Esses mesmos rituais e normas institucionais reforçam os laços de dependência e passividade constituídos nas prisões, estimulando dessa forma a reincidência criminal e, por essa via, fazendo com que a única existência possível seja a do intramuros institucional” (ADORNO, 1998 p.1027).

O código interno dos detentos é peculiar (um amplo arsenal cultural que é desenvolvido entre os presos devido a sua situação). Esta construção do código cativo serve de ferramenta para o entendimento, a segregação, a construção e/ou proteção das relações entre detentos e instituição. Deste modo, o lazer do preso é prisionizado e as características discutidas do prazer, do lúdico e do indivíduo, deverão ser intermediadas com o intuito de decodificar os códigos presentes no espaço de reclusão. Aproximando o lazer encarcerado ao lazer do encarcerado. Isto é, todas as atividades desenvolvidas passam por um filtro simbólico dos detentos que necessariamente reproduzem a sua linguagem, os seus ritos e as formas de poder e submissão, tanto entre os detentos e instituição como entre eles.

Por exemplo, a homossexualidade que é gerada também por um “tráfico do sexo masculino”, onde novos presos funcionam como mercadorias, raspando seu corpo; ou então as visitas que mantém um ciclo de tráfico de materiais; ou o carteado; os jogos de azar; o futebol; as atividades físicas e outras não obrigatórias que se inserem, integram e interagem com o sistema prisional (COELHO, 1987) são tipos de lazer. Todas estas atividades, apesar de reproduzirem o ilícito, são formas de lazer, que não pretendem reflexivas ou mesmo transformadoras, apenas reproduzem dentro deste contexto “sociedade dos cativos” os valores e normas existentes fora dele.

Todas estas atividades no presídio como: carteado, futebol, atividades físicas, jogos ilícitos, jogos de mesa, uso de drogas, assistir televisão, fazer tatuagens e a prática sexual são lazeres e têm um grande papel na cultura da prisão. São as atividades de lazer que definem o grupo que controla a prisão “malandragem” e os subjugados (JOCENIR, 2001). Outro motivo é referente à atividade de lazer como controle da massa encarcerada por parte dos agentes penitenciários, porque as primeiras sanções coletivas atuam diretamente nas atividades de lazer (GOIFMAN, 1998), como: proibir a televisão, o horário de pátio e as visitas.

O lazer do recluso é determinado pelos padrões de convivência do preso, juntamente com as relações no mundo da vida. O lazer e o ilícito seguem lado a lado na formação da sociedade dos cativos. Posso afirmar que o lazer estudado no presídio se relaciona às regras dos cativos na instituição prisional, conjuntamente às manifestações do objeto lazer nos espaços de interação e sociabilidade espontânea, suas ações integram-se à cultura prisional, como já foi apontado. Por conseguinte, o lazer, o ilícito, a prisão e o preso unem-se para formar os padrões e normas culturais do agrupamento dos indivíduos na reclusão. Definindo o lazer do preso a partir dos pressupostos de convivência e relação com o mundo externo, como também as peculiaridades intramuros e a vontade do ser humano para satisfazer sua necessidade de busca do prazer.

O lazer no presídio existe, não pode ser negado. Considerar a inexistência do lazer na reclusão é concordar que o preso esta fora das relações sociais, e que o encarceramento não pertence ao agrupamento contemporâneo, estando estanque à sociedade.

Deve-se ter em mente que o presidiário vêm da sociedade livre, com todas as regras de convivência incorporadas (2) o lazer faz parte do seu cotidiano e é expresso e construído no mundo da vida. Afirmar que não existe o lazer na penitenciária é dizer que o recluso ao entrar no presídio retira toda a sua vivência no mundo social (como uma roupa) e incorpora as novas regras intramuros (vestindo a nova roupa, para utilizar a mesma metáfora), o que não é verdade (ALMEIDA, 2003a).

O cárcere não está separado das ações sociais e dos símbolos coletivos, Albuquerque (1980) na sua crítica aos estudos de Goffman, afirma que o autor discute a relação dos internos através da unilateralidade da formação dos símbolos das instituições totais, sem intermediação das normas compartilhadas pela totalidade do coletivo.

A busca de um corpo ideal na musculação no presídio mostra-nos que os presos não estão aquém da cultura do culto ao corpo, eles possuem televisão e trazem consigo os atributos estéticos da cultura “livre” (Almeida, 2003a). Outra interpretação é ver as visitas como elo de ligação do mundo externo, a liberdade, a lembrança ao passado e a infância (Almeida, 2003a). Por último o RAP, ele é um bom exemplo desta alusão ao mundo externo, nas músicas os presos descrevem a vida na prisão como o cão, valorizam os amigos, a família e o distanciamento das drogas, como também o afastamento do crime. Esta valorização do mundo da vida nos mostra como os presos se reportam aos valores intersubjetivos da sociedade livre.

Todos estes exemplos mostram que a “sociedade dos cativos” é construída na reclusão sim, mas com pessoas um dia livres e que minimamente têm acesso aos bens culturais de fora, seja nas visitas, na televisão, com os carcereiros ou com a entrada de novos presos. Como esclarecido, as regras intramuros, ou melhor, a incorporação dos hábitos locais e definição do indivíduo com seu entorno, não é ato típico da reclusão, mas faz parte da forma de construção da linguagem e dos símbolos que compõem a nossa sociedade (HABERMAS, 1989). Lembrando também que as regras valorizadas na prisão são construídas no mundo da vida, pois a reclusão é a manifestação palpável das normas legitimadas por um coletivo. O presídio representa a evolução sistêmica das normas sagradas e a dicotomia com o profano, tendo um relacionamento próximo com o mundo da vida.

  1. Discussão feita a partir da análise das instituições prisionais brasileiras, de uma ampla bibliografia exploratória e à pesquisa de campo.
  2. VIANA,I.F